O Orçamento Silva

A família Silva é uma família portuguesa típica: recebe mensalmente os seus salários e faz os seus gastos. O problema é que a família Silva gasta mais do que o que recebe. O que lhes está a causar um problema. Convém perceber porquê.

Para tal veja-se em detalhe as características do problema (assuma-se, por facilidade de contas, que são 12 salários no ano e não 14):

  • a famíla Silva em conjunto consegue produzir/ganhar 1000€ mensais. Tem a garantia que os recebe porque senão leva o contribuinte dos seus ordenados a tribunal e se o contribuinte (a empresa onde trabalham) não pagar, vai preso.
  • isto significa que o Produto Interno Silva é de 12 x 1000€ = 12.000€
  • o problema é que a família Silva gastou no ano 2000 mais do que o que ganhava. Todos os meses gastou 1.100€, ou seja, mais 10% do que o que ganhava. Chegou ao fim do ano e tinha gasto 12.000€ + 1.200€ = 13.200€, ou seja, mais 10% do que do Produto Interno Silva. O Défice Silva Anual nesse ano foi de 10% face ao Produto Interno Silva.
  • para fazer face ao Défice Anual Silva do ano em causa, a família Silva arranjou um empréstimo de 1.200€ que o Banco Internacional lhe concedeu contra a assinatura de uma letra no mesmo valor. A Dívida Privada Silva, no ano de 2001, passou assim a ser de 1.200€, 10% do Produto Interno Silva
  • no início de 2001, a família Silva resolveu precaver-se e fazer um Orçamento, o Orçamento Silva. Projectou as suas despesas, não se esquecendo de incluir o investimento numa nova TV LCD. Para isso assumiu que iria haver um Défice Orçamental Silva de 10%. Ou seja, que iria gastar 13.200€ mais 1.200€ do que os 12.000€ a receber. Iriam cobrir o Défice Orçamental Silva de 10% com mais um empréstimo do Banco Internacional, ficando assim com uma Dívida Privada Silva de 20% (2.400€) do Produto Interno Silva
  • o Banco Internacional concedeu o empréstimo à família Silva (contra a assinatura de outra letra), mas um amigo da família (o Fernando Manuel Inácio, FMI para os amigos) não deixou de avisar que não era conveniente manter os Défices Orçamentais Silva acima dos 3% porque isso levaria rapidamente a uma Divida Silva de mais de 50% do Produto Interno Silva (ie. a uma divida de 6.000€) que seria dificil de pagar tendo em conta o Produto Interno Silva. A famíla Silva argumentou que este ano era por uma boa causa: o investimento numa TV LCD iria com certeza permitir um crescimento do Produto Interno Silva porque toda a família estaria mais feliz e portanto mais produtiva.
  • acontece que, chegados a 2002, na altura de se fazer o Orçamento Silva para esse ano, o “investimento” na TV LCD não tinha tido retornos (em verdade, não era esperado que tivesse) e não contribuiu em nada para a produtividade da famíla Silva. Nesse ano o Produto Interno Silva continuaria a ser de 12.000€. O Défice Anual Silva de 2001 tinha sido de facto de 10% (1.200€) do Produto Interno Silva e a Divida Privada Silva tinha passado para 20% (2.400€) do Produto Interno Silva.
  • apesar dos conselhos do amigo FMI, a família Silva fez um Orçamento Silva para 2002 que incluía um novo investimento, desta vez em roupa de marca que iria com certeza trazer retornos para a família porque esta seria mais feliz. Esse investimento significava que iria have mais um ano em que o Défice Orçamental Silva iria ser de 10% do Produto Interno Silva, mais 1.200€ do que o que ganhavam com o Produto Interno Silva, valor esse que iria ser coberto por mais um empréstimo do Banco Internacional (contra assinatura de uma letra). Chegando ao fim do ano, o Défice Anual Silva seria mais uma vez de 10% do Produto Interno Silva e a Divida Privada Silva passaria para os 30% do Produto Interno Silva.
  • o problema actual deriva do facto de a familia Silva ter feito o atrás descrito durante 10 anos: todos os anos fez um Orçamento Silva Anual com um valor 10% superior ao Produto Interno Silva com fins de “investimento”, acabando por acumular uma Dívida Privada Silva de 100% do Produto Interno Silva. Ou seja, a família Silva encontra-se neste momento perante a situação em que, caso o Banco Internacional o exigisse, teria de entregar todo o Produto Interno Silva do ano corrente, ficando sem nada para comer.
  • a família Silva tem mais investimentos para fazer e por isso pediu ao Banco Internacional mais um empréstimo para cobrir os 10% a mais que o Défice Orçamental Silva apresenta face ao Produto Interno Silva. Mas o Banco está renitente em emprestar o dinheiro, até porque um funcionário do Banco (o Sr John Rating) resolveu dizer que se a família Silva continuasse com Défices Anuais Silva na ordem dos 10% do Produto Interno Silva, seria necessário alterar a taxa de juro do empréstimo. A família Silva considerou isto um desaforo e considerou que o Sr Rating não tinha o direito de falar do empréstimo da família Silva nem muito menos de se meter nos assuntos da família Silva. Ao que o Sr Rating respondeu que nesse caso não haveria empréstimo nenhum, até porque o mais provável era que com uma Dívida Privada Silva de 100% do Produto Interno Silva, o mais provável era a família Silva não conseguir pagar as prestações do empréstimo.
  • e isto traz-nos ao problema actual da família Silva: continua a ter um Produto Interno Silva de 12.000€ anuais, mas já acumulou uma Divida Privada Silva de 100% do Produto Interno Silva (12.000€ portanto). A ter de usar todo o Produto Interno Silva deste ano para pagar a Divida Privada Silva, ficam sem dinheiro para comer. E sem dinheiro para gastar em dois novos investimentos: uma pista de comboios eléctrica e um avião telecomandado.
  • a família Silva já pensou em impor à empresa onde trabalha (a empresa Portugal, que contribui com os salários da família Silva) um aumento dos salários. Mas a empresa diz que não aceita que isso lhe seja imposto e que a família Silva é uma colecção de malandros, que até tinham prometido fazer mais pela empresa mas passaram o tempo em plenários a discutir qual era a melhor pista de comboios e qual era o melhor avião telecomandado. O que obviamente não tem nada a ver com a vida da empresa nem com a produtividade da mesma.
  • a família Silva também já pensou vender alguns bens que tinha recebido de um dos avôs (o Sr Botas), mas parece que isso lhe rende pouco mais do que 500€, cerca de 5% do Produto Interno Silva. O que mesmo assim não chega para cobrir o Défice Anual Silva de 10% do Produto Interno Silva, nem muito menos para pagar parte significativa da Divida Privada Silva.
  • a famíla Silva também já pensou em cortar as despesas em casa, mas os filhos Silva (um com 38 anos e o outro com 25) dizem que isso é inaceitável. A opção de os mandar trabalhar foi considerada mas os filhos têm direitos básicos inalienáveis e por lei não é possível recusar-lhes cama, comida e roupa lavada.
  • perante este impasse a família Silva espera não ter de recorrer a um empréstimo do amigo Fernando Manuel Inácio. É que ele já disse que até emprestava o dinheiro, mas que não havia pista de comboios para ninguém nem avião telecomandado. E que ainda tinham de lhe dar a TV LCD e as roupas de marca como garantia. Para além disso, parece que o amigo é falador e que é garantido que as outras famílias vão ficar a saber do problema da família Silva. O que pode prejudicar os jantares grátis para onde a família Silva é convidada de vez em quando.

A família Silva agradece qualquer contribuição no sentido de resolver este problema, desde que a mesma não implique trabalhar mais ou gastar menos. Prefere uma solução que inclua uma instituição de crédito que esteja disponível para ser enganada e para emprestar mais algum. É este ano que os investimentos vão dar frutos. Garantido.

11 comments

  1. Laranjada Ovarense

    Parece que a familia Silva vai fazer umas rifas para “passar” lá na empresa aos otários, ver se algum cai …

  2. um espelho das nossas familias…e quiçá de Portugal em si…

  3. Reflexo das famílias portuguesas.
    Tendência para querer sempre algo mais e nunca estar feliz com o que se tem é, infelizmente, algo muito natural a todos os portugueses.

    • Um reflexo e um espelho das famílias. Mas também do estado das Finanças do País resultado da “família” Governo.

      — MV

  4. Carlos Silva

    Fabulosa analogia das Finanças Públicas “reduzida” à escala de uma família típica portuguesa.

    Parabéns.

    Esta “fábula” deveria fazer parte dos manuais escolares de Educação Cívica das nossas escolas.

  5. Eu acho que a família tem várias opções em aberto para resolver o problema. Listo-as por ordem de facilidade e probabilidade de execução:
    *ir morar para debaixo da ponte quando o Banco Internacional exigir todos os seus bens em troca do dinheiro emprestado
    *vender tudo ao desbarato e comprar um barraco lá para o nordeste brasileiro, onde há banana e fruta-pão à mão de semear, não faz frio (portanto não é preciso aquecimento central ou roupa adequada), e mamar caipirinhas e sambar o dia todo
    *imprimir o seu próprio dinheiro (onde é que eu já ouvi isto antes?) e convencer o Banco Internacional e outros a atribuir-lhe um valor superior ao papel higiénico
    *descobrir petróleo ou ouro em grandes quantidades no quintal lá de casa …

    A opção correcta – tomar juízo e arrepiar caminho, começar a trabalhar duramente e deixar de gastar mais do que ganha – não é obviamente viável … pelo menos, enquanto não vier outro Prof. Dr. mandar nisto tudo …

  6. […] melhor explicação sobre o Défice e a Dívida Pública que já vi: o problema é que a família Silva gastou no ano 2000 mais do que o que ganhava. Todos os meses gast… AKPC_IDS += "796,"; Pode seguir todas os comentários a este artigo através do feed RSS […]

  7. Triste realidade

  8. Elisabete Goncalves

    Onde será que eu já ouvi isto???
    Será que o “Sr. Silva” vai ter coragem de pôr finalmente, os “filhos” a trabalhar e ele e a mulher cortarem nos LCD’s e nas roupas de marca?
    Náh!!! Não me parecem… Se isto acontecesse, começavam logo a dizer que é preciso fazer isto e aquilo… mas cortar nas despesas e ganhar juizinho, não dando “passos maior do que as pernas” é que nunca!!!
    Meu Deus, que será desta família Silva de 10 milhões de pessoas?

  9. HugoDaniel

    Muito bom! Parabéns :)

  10. A solução é a óbvia mudança do “paradigma sócio/económico”,que não deverá demorar mais de uma década e cujo sentido politico é fácil de calcular:1 a mandar, todos a trabalhar e nenhum a gastar.